O Cego
“Você sabe qual foi a sua primeira palavra?”
É cedo para acordar
Logo é cedo para recordar
Sempre penso o que sou:
Cego é o que sou
Quem será
Se não vejo o que sou:
Cego é o que sou
Depois sempre e depois
É cedo para acordar
Logo é noite em algum lugar
Depois é sempre depois
É sempre tarde para recordar
Quem será? (alguém que esqueço!)
Como pude achar
Que seria alguém neste lugar
Depois é sempre depois
Depois sempre é depois
I
“Este é um cego quem fala
Cego sonhador
Cego pensador
Que vive a exclamar
Quem será?”
Ele e seu amigo Narciso
Vivem num mesmo meiomar
É assim todas as manhãs
Quando o sol nasce
O cego segue o seu disfarce
- Acho que devo me levantar –
Há! O som das crianças
A desapertar, crianças
Quando a minha infância
Brincava. Criava distâncias
Que não podia ultrapassar
Crianças podem ser malvadas
Como belas devem ser
Como bela era a infância
Antes de crescer
Agora tenho que andar
Para todas as direções
Vejo o som do mar
Caminho ao sol
Para qualquer lugar
Antes vou descansar
II
“Lá se faz, apisto
Malefício do querido Narciso
Que não quer engordar
O cego descansado
Observa a grama crescer
A verde-mar
que se esconde
e incomoda Narciso
que não quer se ver
no escuro
Da manhã
A luz não o reflete
O cego segue seu caminho”
Que belas são aquelas flores
Apenas penso nisto
Se o cheiro é o que sinto
Não tão belas devem ser!
Ouço!
É o canto do pássaro livre
E o que sinto não é apenas isto
Se sua fome ele saceia
Penso nisso ou apenas nisto
A que a vontade anseia
Não houve o choro dos corvos
Ouço apenas a minha vontade
Que aqui se encontra com a verdade
Que há em qualquer lugar...
Já é dia, sei por que é o som
Do sol menor a cada dia
Já que sinto o perfeito vibrar
Do espírito de cada coisa,
Vou encontrar alguém
Neste lugar
Certo que nunca pensei nisto
Pra mim é coisa dos tolos
Mas é incrível como eles pensam nisto
Tolo sou eu que nunca pensei nisto,
Como para cada coisa eles relacionam outra
Mas. Onde estou,
Cheira a podre
Mais não sei porquê
Eu estou triste com Narciso
Que não se vê
Que não vem me ver
E já não tem o que dizer
Depois que passou a se vangloriar
- “há algo morto aqui...posso sentir!”
III
“Narciso é edaz, vendo o que ninguém está vendo...
Malefício do querido Narciso
Malfazejo que hoje não quer falar
Ganhou um espelho: daquele que não sabia usar”
O cego agora sozinho está
O cego tem pouca sorte
Recordo não sei o que em minhas lembranças
Lembranças obscuras...
No dia que conheci o canto de cura
Aquele apiedar que me move
Que deixa lágrimas
O som do pássaro livre
Que jamais pousou
Me acorda antes que o sol
As lembranças de outras vidas,
Passo mal ao tentar lembrar
Quando eu podia enxergar...
Quero sair daqui me dizem
Que é o lugar de um corpo morto
Onde estou?
IV
“ele lava os olhos, coitado,
Coitado pela noite
Eterna ele segue, andanças
Distâncias tão distantes
Que dizem
Que já foi tão longe...
O cego não é louco
Só um pouco
As vezes o cego se esquece
Que é cego, às vezes
Não esquecemos...
O cego é cego
Porque não sabe o que passou”
Aonde estou cheira a podre
E os pássaros da noite
Começam a cantar os sons
Da carne
- As pessoas são incríveis
Elas já sabem o que é o animal
Sabem que passou mal
E depois morreu
Já sabem tudo isto
Enquanto eu só consigo sentir o cheiro
Coitado morreu enforcado
Este cão, falante
Que tinha cor de elefante
E não sabia ladrar
Morreu agonizante
Querendo se soltar
Desta coleira, cela
Que o prendia
Eu queria ajudar
A se livrar
Mas é sempre tarde
Para ajudar
Eu queria ter um cão
Que pudesse me guiar
- “E sozinho o cego cegue seu caminho
Segue para qualquer lugar”